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ATÉ ONDE O CORPO AGUENTAFernanda LopesAo longo de mais de duas décadas de produção, Gustavo Speridião vem investigando em pintura, fotografia, vídeo, desenho e objeto a possibilidade de existência, especialmente a existência da imagem. Não a imagem como virtualidade, imagem-luz, mas fisicamente, como corpo. A exposição O Inventário de Problemas – um reencontro do artista com sua cidade natal depois de cinco anos de sua última individual no Rio de Janeiro – apresenta um conjunto mais recente dessa discussão. A mostra toma emprestado o nome da série que na Galeria Cassia Bomeny vemos em 11 obras inéditas, e revelam um estudo quase compulsivo sobre o plano da pintura, como uma arena de debates pictóricos e também políticos. Em sua produção, Speridião não nos deixa esquecer que toda a discussão sobre arte (sua definição, sua história e questões aparentemente estéticas) é também uma discussão política. O ponto de partida desses trabalhos é o mesmo: como pensar a ocupação do plano a partir da divisão desse espaço com dois retângulos, posicionados um em cima do outro, com um espaço entre eles. Essa estrutura é uma velha conhecida do artista, desde 1997/1998, quando começou a imprimir suas fotografias em formato de copião - um conjunto de fotos impressas em formato reduzido em uma página. No caso de Gustavo, cada folha vinha com duas fotos, retangulares, com um espaço vazio entre elas. A princípio aleatória, uma vez que reproduziam a ordem das imagens no rolo de filme, essas sequências começaram a ser pensadas por ele, já no momento da fotografia, construindo ali uma narrativa visual a ser acessada posteriormente. Vinte anos depois, entre 2017 e 2018, O Inventário de Problemas começou a ser construído tendo como ponto de partida os mesmos retângulos e o mesmo espaço entre eles. E é explorando diferentes aspectos dessa possibilidade de relação que essa série se desdobra. A economia cromática evidencia a ocupação do plano pelos retângulos e pelos vazios como campos de força. Há uma tensão no espaço, com os diferentes pesos que esses elementos assumem, como eles se ressignificam, como estabelecem ou não uma narrativa entre eles. Um problema é uma questão ou um assunto que requer uma solução. Por princípio, todo problema busca ser resolvido, ser deixado para trás. Não é o que querem as pinturas de Gustavo Speridião. Aqui, dificuldades, obstáculos, incertezas, complicações, contrariedades, adversidades, contratempos e embaraços, são trabalhados quase que obsessivamente. Eles aparecem, desaparecem, e voltam, de novo, e de novo, e de novo. Seu inventário é como um exercício sem fim para os olhos, o corpo, a mente e a história. É como uma coleção de tentativas e erros. E é na afirmação dessa possibilidade que reside o trabalho. O corpo do próprio artista é adotado como unidade de medida desses trabalhos, que se configuram no limite de autorretratos. A começar pelo tamanho da tela, sempre com altura de cerca de 2 metros (medida próxima à altura do artista) e largura que varia entre 2 metros e, na maioria das vezes, 1,7 metros – correspondendo à medida do artista de braços abertos. A escala das telas é reforçada pelos chassis, que é mantido aparente nas laterais desses trabalhos. A pintura aqui não é só a superfície, mas também a estrutura que a sustenta. Uma pintura que não tem nada de ilusória ou virtual: que não entra em qualquer lugar e que demanda esforço para ser transportada e sustentada na parede. Esse esforço também é demandado do artista. O que vemos na tela é resultado e depende da ação que o artista faz, ou consegue fazer, no uso da tinta e na ocupação do plano. Essa é uma pintura que não se faz mais no movimento do pulso, na distância do braço. Ela se faz quase literalmente como um embate, reforçado pelo contraste entre a tinta preta (e suas variações a partir dos diferentes usos que Gustavo emprega) e o algodão cru da tela – que aqui não é fundo, mas sim matéria. Aqui, o plano é como um campo de batalha, de disputa de forças, uma trincheira e também um refúgio, não só da história (da arte), mas também do artista com o próprio fazer da pintura. Há também algo de mórbido nessas telas. Talvez pelo o que elas nos dizem, literalmente, nas frases e palavras que Gustavo coleciona. São inúmeros cadernos ocupados ao longo dos anos com um acervo de pensamentos e observações do próprio artista, revisitado a todo momento como fonte de pesquisa. Nas telas, são como aforismos – algo entre pichações e epitáfios – que conversam entre si, e junto à tinta, às formas, os vazios e a caligrafia, constroem imagens. Juntos, esses elementos testam o limite desses planos. Testam os limites desses corpos. O lugar em que a história da arte ensinou que tudo é possível, que tudo cabe. Mas, como Gustavo nos mostra, as coisas, as palavras tem peso. Até onde o plano/corpo aguenta?
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