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2022
exposição individual "Sobre Poesia", na Central Galeria (São Paulo, Brasil)
curadoria e texto: Clarissa Diniz
KEEP THE BUZZ ALIVE
Clarissa Diniz
NUVEM
São quase 20 anos desde a primeira vez em que me deparei com um cubo vazado com a inscrição NUVEM (2004) pintado sob uma ponte do Recife. Eu não sabia, mas estava diante de uma das intervenções que Gustavo Speridião vinha fazendo no porto do Rio de Janeiro, uma espécie de obsessão que então já revelava sua paixão pelas nuvens, pela impermanência, pelas formas liminares da presença.
Longe de uma abordagem metafísica do céu, ao devotado admirador da obra de Claude Monet interessava participar da aventura da arte – e, em especial, da pintura – em torno dos paradigmas da representação. Por isso, junto aos seus cubos, algumas vezes pairava a tão irônica quanto crédula afirmação “como pintar uma nuvem”.
Diferentemente de Monet, contudo, Speridião não tomou para si o desafio de mimetizar ou traduzir pictoricamente sua vagante impermanência. Se, como sabemos, um dos embates fundantes da invenção da arte moderna euro-etnocêntrica se deu entre os modos de percepção e os esquemas da representação, ao trilhar os caminhos pavimentados naquela virada para o século XX, Gustavo esquivou-se da abordagem fenomenológica desse confronto.
Assim, à apaixonada persistência de alguns pintores modernos em criar formas de representar nuvens e outros fenômenos atmosféricos, Speridião respondeu com uma abordagem primordialmente política. Ao invés de dedicar-se à questão estética da representação daquilo que, no mundo, é incontornavelmente fugidio a ponto de apresentar-se como vazio, o artista preferiu lidar com o problema político da captura que está implicado na representação.
Ao fazê-lo, enquanto pintava, sobre pesadas e monumentais construções urbanas, cubos vazados com a palavra NUVEM dentro ou fora de sua estrutura gráfica, Gustavo lidava com o fato de que – semântica, estética, social e politicamente – representar é tanto confinar quanto evanescer. Desde então, sua obra parece estar especialmente interessada em produzir e sustentar tal liminaridade no campo da representação.
GUTTER
As nuvens de Speridião sobre o pano de fundo da cidade logo se tornaram variados e complexos diagramas que tomam o plano da pintura como um espaço liminar. É o que acontece quando, por exemplo, o artista inscreve a frase “fora do plano tudo é ilusão”1 por entre áreas demarcadas com linhas que estão, por sua vez, sobre o amplo plano da tela. Trata-se de uma intrincada equação sígnica que, correlacionando parede, chassis, superfície e desenho, dá a ver que a pintura é, ao mesmo tempo, tanto a “ilusão” quanto seu hipotético oposto, o “real”.
Por entre incontáveis e sempre singulares variações dessa equação, não parece ser do interesse de Speridião fixar seus esforços estético-políticos num “dentro” ou num “fora” tanto do real quanto da ilusão. Fundamentalmente, sua obra tem se dedicado à produção de liminaridade por entre essas categorias, sustentando uma instigante ambivalência cuja baliza crítica é justamente a linha que perfaz a separação e/ou o contato entre aquilo e aqueles que – estética, política e socialmente – nos interessa aproximar ou apartar.
Não à toa, sua obra tem frequentemente aludido à imagem do espaço de passagem entre as coisas, como aparece na pintura GUTTER (2020), termo inglês que designa calha, canaleta, rego. Enquanto nas histórias em quadrinhos gutter indica justamente as linhas que separam os diversos campos da narrativa – os entre-espaços que estruturam uma página de gibi, por exemplo –, na poética de Speridião o vemos assumir cada vez mais protagonismo, por vezes expandindose a ponto de tornar-se maior do que o campo ao qual deveria servir como delimitação.
Emancipando-se da condição de apêndice ou de um lugar de invisibilidade, o espaço liminar tem se tornado um dos problemas centrais de sua obra, como já esboçado nas NUVENS. Nelas, a intencional e provocativa inaptidão representacional sublinhava a própria condição liminar da representação: o entendimento de que aquilo que buscamos representar está de passagem, de modo que ressaltar a permanência e/ou a transmutação dos objetos e sujeitos representados se torna, ao fim e ao cabo, uma escolha não só estética, como também ética e política.
CESURA
Dois anos atrás, Gustavo Speridião pintou A MARCHA SEM FIM DOS POETAS REBELDES (2020), um díptico que continha em seu útero a instalação MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, agora parida e em pé na individual Sobre poesia.
No espaço-tempo que igualmente as separa e conecta, o artista parece ter vivenciado um duplo movimento em relação às referidas obras. De um lado, sintetizou seu campo semântico. De outro, expandiu e multiplicou sua operação pictórica no espaço, transformado o antigo díptico num políptico de caráter instalativo.
A redução assumida por Gustavo infere-se na supressão dos artigos e preposições do título anteriormente pensado (“a” e “dos”), bem como na transformação da ênfase de seu enunciado, agora menos interessado no protagonismo dos autores, “os poetas”, do que na agência da própria poesia.Os cirúrgicos cortes operados por Speridião sobre a formulação retiram seu quase axioma do campo dos bordões para inscrevê-lo, com mais fugacidade, no território da poesia. Prescindindo de qualquer função conectiva entre os substantivos que habitam os títulos das obras, o artista produz um gutter semântico que decerto faz seu anterior lema parecer, agora, uma espécie de haikai.
Não à toa, dando continuidade às investigações linguísticas que levaram o artista a elaborar as mostras sobre desenho (2007), sobre fotografia e filme (2013) e sobre pintura (2021) e na atual exposição, MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE se filia ao poético, modo linguístico que tem na cesura uma de suas tradicionais características.
Termo que Freud utilizaria para descrever a relação de simultânea continuidade e ruptura que se dá no nascimento, a cesura é, todavia, um conceito originário do campo da poesia. Indica uma pausa intencional no interior do verso: um corte tão rítmico quanto sígnico.
Parida de sua versão causal – na qual palavras linearmente organizadas indicam relações de um pertencimento exclusivista, isto é, de propriedade (“a marcha” é, afinal “dos poetas”) –, MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, rebento cesurado da obra de 2020, explora o corte poético também no espaço, organizando-se em seis faces igualmente consecutivas e descontínuas.
Ao fazê-lo, Gustavo Speridião promove a convergência entre o gutter e a cesura. O que rompe o cárcere dos sentidos unidirecionais é a própria irrupção do espaço por entre sua pintura-enunciado: uma pausa duplamente métrica que é, afinal, um projeto de fuga ao – ou desconstrução do – controle das significações, corporeidades, políticas e representações.
VERSO
Em MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, além de cesurar seu enunciado transmutando-o poeticamente, Speridião – que sabe que “fora do plano tudo é ilusão” – parece estar às voltas com a tradicional planaridade da poesia, incitando-nos a uma experiência com o verso do poema.
Ao instalar hexagonalmente o poético enunciado de cinco palavras, o artista nos coloca diante, dentro e fora de múltiplos cortes, cesuras, vazios e gutters. Ofertando um corpo planar – e com verso – para cada um de seus termos, Gustavo nos faz experimentar a pausa métrica da cesura como um hiato físico: o livre e conectivo vão entre as palavras e sua semantização torna-se, na instalação, a própria presença do vazio entre as telas. Espaço que é vivenciado como ar, como luz e como lugar de passagem.
Em sua autonomia construtiva, por ficarem de pé, as palavras que tanto se camuflam quanto emergem por entre acinzentados campos de manchas e linhas de carvão se fazem, portanto, como intervenção espacial. Tomam o espaço – necessariamente social – como uma de suas matérias, compondo com a complexidade que lhe é inerente: o verso, o tempo, as pessoas, o território, a arquitetura, a atmosfera, a poeira, dentre outros aspectos.
Ao construir um hexágono a ser adentrado, ziguezagueado ou circundado por outros corpos e pelo próprio ambiente, Gustavo Speridião parece estar atualizando a estrutura estético-política de suas NUVENS, criando uma arapuca entreaberta cuja dimensão construtiva e pictórica tem, por fim, a intenção de cesurar sentidos, movimentos e ordenações. Ao nos conter, a obra paradoxalmente intenciona libertar-nos da compulsoriedade histórica, política e simbólica de produzir significados e caminhos lineares, diretivos, elucidativos, normativos, prescritivos, produtivos.
SEM FIM
Como trotskista, Speridião não só aposta, como principalmente enxerga a “revolução permanente”. Sua paixão pela impermanência das nuvens e os desafios da representação que nela estão implicados tem, evidentemente, raízes políticas de grande amplitude e profundidade: o compromisso ético em não encerrar ou considerar como ex nihilo as conquistas das tantas lutas, atento que está à necessidade de seguir revolucionando em razão da infinitude das urgências sociais e da consciência de que não é possível delimitar, posto que nos ultrapassa, quando a luta começou.
Nesse sentido, ao longo de sua profícua obra, inúmeras são as situações nas quais Gustavo tem produzido continuidades, como agora acontece com MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, cuja dimensão circular faz o poema tornar-se infindo tal como a marcha e a rebeldia por ele invocadas.
Numa justaposição circular, a instalação torna multidirecionalmente reversível a leitura do poema. Além de ser lido em frente e/ou verso, é também passível de, espiralando a cesura, ser recombinado pelo movimento de nosso corpo, que pode retornar ou ricochetear a si mesmo e às palavras, produzindo poemas como “REBELDE MARCHA POESIA SEM FIM”, “FIM REBELDE SEM POESIA MARCHA”, “POESIA SEM MARCHA FIM REBELDE”, dentre inúmeras possibilidades que têm o poder de transmutar substantivos em verbos ou adjetivos, and back again.
Dedicar-se à criação de estruturas formalmente infinitas integra, desse modo, o engajamento de Speridião em, desde suas NUVENS, sublinhar mais a transmutação e a liminaridade do que a ousar fixar ou esgotar percepções, conceitualizações, sentidos e representações.
MARCHA
A instalação agora montada em "Sobre Poesia" não só nos convida a caminhar em seu entorno e a atravessá-la, como também foi produzida em marcha.
Deitadas sobre o chão durante dias, as telas agora tornadas imponentes presenças verticais foram, antes, pisoteadas. Sem que essa caminhada tenha qualquer ambição performativa da parte do artista, ela todavia constitui o projeto estético da obra: em MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, o caráter descentrado do poema e da espacialidade da instalação se faz também na multiplicidade de direções e intensidades de seus traços, manchas e grafias.
Andando em círculos sobre as telas, foi com os pés e com outras partes do corpo – de modo a desbancar o canônico protagonismo da “mão do artista” – que o carvão, a tinta e o verniz foram se impregnando nas pinturas junto à ação do tempo, que trouxe sua colaboração na forma de poeira, vento e decantação.
É também por essa específica temporalidade que algumas das pinturas que compõem a instalação lembram aos muros pintados das cidades dada a sensação do acúmulo e da anacrônica convivência de gestos diversos, bem como dada a variedade de recursos técnicos nela coexistentes, tal como as fachadas onde testemunhamos marcas de poscas, stickers, trinchas, sprays, cal etc.
Desse modo, MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE dá sequência às prolíficas investigações técnico-formais da obra de Speridião, cuja habitual descrição “técnica mista” estrategicamente mantém anônimas as táticas e os recursos por ele explorados.
Não só porque não nominados, mas sobremaneira porque imiscuídos, a sofisticada trama de artifícios e dispositivos composicionais empregados pelo artista informa a sensação de estarmos diante de uma pequena massa de acontecimentos, presenças e subjetividades.
MASSA
Gustavo Speridião dedicou sua dissertação de mestrado ao Bípede, um personagem-narradorautor que, em relação ao próprio artista, se posicionava – posto que não se tratava de uma definição identitária – como (Eu (ele (o autor))).
Intitulada Como Me Tornei Bípede ou Os Problemas Políticos de Ser Bípede (2007), a partir do tema das duas pernas que nos servem de apoio, o artista nos introduz numa de suas principais estratégias estéticas, em tudo irmanada à máxima marxista-trotskista da revolução permanente – a “fragmentação permanente”: “se faço o papel de dezenas de autores diferentes que se contradizem uns aos outros, e mesmo a si próprios, o Bípede também foi um multiplicar constante podendo dizer que temos Doze Bípedes, todos incertos e vacilantes, todos contraditórios entre si”2.
Posto que as pernas agem conjuntamente, sua singular conformação nos corpos humanos tem a capacidade de nos fazer experimentar a dimensão de multiplicidade que é inerente à unidade. Um interesse sociopolítico ao qual se soma o fascínio estético de Speridião pelos kouroi: tradição da estatutária grega que, em sua representação monumentalizada de corpos masculinos, os apoia sobre um par de pernas em posições distintas, com um pé à frente do outro, num passo interrompido pela representação que o congela entre o ir e o vir, isto é, na condição de liminaridade da passagem.
Produzir diferença na própria inerência, tal como a cesura no interior de um verso, é uma contribuição da arte no âmbito da forma política. Como autor, Speridião busca fazê-lo ao incorporar a dialética dentro sua própria obra, antecipando, já no processo de criação, a usualmente posterior confrontação com a diferença. Uma operação de dialética intrínseca que se torna, assim, uma estratégia construtiva.
Para tanto, além de provocar e evidenciar cortes, cesuras e gutters, o Bípede-Gustavo – um fragmentador de si mesmo – tem performado diferentes projetos estéticos numa mesma obra, intencionalmente tornando algumas de suas pinturas tão geométricas quanto gestuais, tão expressivas quanto conceituais, tão planejadas quanto acidentais.
Em consonância à sua prática de apropriação de livros, imagens, símbolos ou enunciados, trata-se da disposição a evocar a multiplicidade “estilística” (isto é, estético-política) no seio do território simbólico ao qual o “Ocidente” tem reservado a expectativa de uma unidade identitária: o artista e sua supostamente idiossincrática, inconfundível e inalienável criação.
Em Speridião, a voluptuosa convivência entre diferentes vocações estéticas numa mesma obra por vezes precipita a sensação de estarmos diante do trabalho de dois ou mais autores, evocando presenças díspares que não convivem em equilíbrio, mas em movimento.
É o que acontece em grande volume em MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, cuja caminhada multidirecional produziu manchas desordenadas a ponto de ficcionalizarem a existência de uma massa de pés, mãos, corpos. Percepção reforçada, ainda, pela fisicalidade heterotópica das seis pinturas que, de pé, nos rodeiam como se estivéssemos dentro de uma roda de ciranda ou de pogo, abraçando-nos em sua performatividade igualmente ameaçadora.
Para Speridião, ou a revolução é das massas, ou não será revolução.
REBELDIA
Gustavo Speridião é um militante socialista que tem, nas ruas, uma de suas principais escolas de arte. Para o artista, as técnicas de manifestação ou de autodefesa são não apenas estratégias de luta, como também de elaboração estética.
Compreensão que o levou a fundar o Faixa Protesta em parceria com Leandro Barboza: um coletivo que desenvolve faixas de grande escala para as marchas públicas de reivindicação social que se passam, em especial, no Rio de Janeiro. Ao fazê-lo, Speridião experimenta a própria manifestação como um lócus artístico.
Vem da experiência da luta popular a relevância que a ideia de barricada tem tomado em sua obra, do que MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE é um claro exemplo, na medida em que faz uso de soluções construtivas do tipo do it yourself para botar essa instalação-trincheira no mundo.
Como um elogio à rebeldia, a obra é, ela mesma, um exercício de memória e de fabulação de táticas de confronto popular e saberes insurgentes como a marcha, a faixa, o lambe, a roda, a pichação ou a barricada, alguns dos procedimentos mobilizados em sua criação.
Fortemente inspirado pela autodefesa dos moradores de Pinheirinho (São Paulo) contra a violenta reintegração de posse sofrida pela comunidade em 2012, a obra de Speridião parece compromissada com o que, como um lembrete, evoca uma discreta anotação de um de seus muitos cadernos: “keep the buzz alive”.A revolução permanente pede, afinal, uma rebeldia sem fim.
POESIA
A teologia da ordem que identifica a ideia moderna de Estado se constrói também por meio da linguagem, essa admirável capacidade expressiva e representacional que, embora irredutível à comunicação, tem sido continuamente achacada pelo capitalismo cuja eficácia produtivista não a tem poupado.
Ao contrário, como demonstra a própria operação ideológica cuja discursividade pretende “anular a diferença entre o pensar, o dizer e o ser, [engendrando] uma lógica da identificação que unifique o pensamento, linguagem e realidade”3, o capitalismo manipula a linguagem para fazer, dela, uma de suas principais aliadas na contenção da rebeldia. Um sistema econômico que precisa contar com a domesticada distribuição dos corpos e das atividades em papeis produtivos bem delimitados usa a linguagem para ficcionalizar a sensação de que “tudo está em seu devido lugar”.
A poesia, por sua vez, é uma forma de linguagem cujas estratégias de enunciação permitem e, mais do que isso, fomentam o descompromisso criador e crítico com a teologia da ordem. Operações como a cesura – estratégia de fragmentação interna dos sentidos, narrativas e imagens – são, portanto, contrapartes semântico-formais da própria rebeldia: modos de insurgência contra o establishment que se dá tanto no Estado quanto no capital ou na linguagem.Fazer poesia é, como salienta Speridião, imaginar e experimentar outras formas de organização que, desde os sentidos e as formas, são também sociais e políticas.
Na contramão da fantasia modernista que imaginou ser possível tornar as formas autônomas e soberanas, sua obra encara o espaço pictórico como espaço social. Na pujança gráfica e semântica de seu trabalho, é a própria experiência política da vida que encontra diagramas possíveis. Por entre materialidades, imagens e palavras, sua pesquisa se configura como um abundante exercício de, através da arte e de suas políticas de representação, praticar, friccionar e inverter as ordens e organizações socialmente postas no mundo.
Em Speridião, a canônica hierarquia da composição serve não como metáfora, mas como especulação crítica das estruturas hierárquicas de nossas sociedades. Os sistemas de contornos, limites e borramentos põem em tensão a racionalidade organizacional de nossas nações, classes, governos e corporações. Por sua vez, toda matéria se faz como memória e tecnologia social, ao passo que toda cor é afecção política. Por fim, para o artista, a poesia está para a linguagem assim como a rebeldia está para o establishment.
Aprender a fazer uso de gutters, cesuras e outros cortes é, portanto, uma arma contra a fantasiosa estrutura discursiva do poder que, ficcionalizando a ordem social e política, nos quer fazer acreditar que não há mais brecha, fresta ou mesmo vácuo passível de ser ocupado ou tomado como porta de entrada para a implosão da própria estrutura que os produz e os mantém à sombra.
CINZA
A despeito de sua monumentalidade, MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, essa espécie de pedagogia poética para uma permanente rebeldia política, não se faz de forma estridente ou espetacular. A econômica sisudez de sua “massividade objetual”4 é pouco sedutora; nada tem da luminosa nitidez do galante mundo digital.
Ao contrário de uma luminosidade que é puro brilho, a luz que cruza e constitui a instalação é por ela mesma em grande parte absorvida, tomando as seis pinturas como rebatedores através das quais o que ilumina já o faz numa atmosfera opaca, contida como o preto e o branco que matizam a intensidade gestual da obra.
MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE é, por isso, eminentemente cinza como uma nuvem pesada, tomada pelo estado liminar de vir a ser chuva e, quiçá, tempestade. Tal qual as nuvens, sua cinzura não é da ordem do pigmento, mas da passagem de cor fabricada no desfazimento do carvão cujo negrume, de tão pisado, acinzentou-se.
Cromaticamente rebaixada, a instalação é, como circunscreveu o próprio artista, um “épico melancólico”. É pouco triunfal em sua verve revolucionária, mas suficientemente rebelde a ponto de tornar-se poesia e, através dela, não se deixar abater pelo desolado lamento das batalhas perdidas.Como afetuosamente contestam os versos de Amor Cinza, de Matheus Aleluia – cuja voz grave e hipnótica Gustavo Speridião escutava enquanto caminhava pintando sua MARCHA SEM FIM... –, “na linha do horizonte tem um fundo cinza (...) / não aceito quando dizem / que o fim é cinza / eu vejo o cinza / como um início em cor / (...) vamos festejar o cinza com amor”.
1 “Fora do poder tudo é ilusão” (Lenin).
2 Excerto da dissertação do artista. Disponível em: http://serbipede.blogspot.com/.
3 Marilena Chauí em Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas (1997).
4 Guilherme Bueno em Escaramuças pictóricas (2011). Texto crítico da mostra Fora do plano tudo é ilusão, realizada na Anita Schwartz, no Rio de Janeiro.
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